#35 uma carta para minha neta (ou neto?)
edição extraordinária de domingo para chorar e inspirar
Brasil
Essa semana meus avós fizeram 64 anos de casados. Sessenta e quatro. É mais tempo que a vida de muita gente. Esse tempo me fez refletir o que eles construíram ao longo de mais de seis décadas: 4 filhos, 8 netos, e a pergunta constante de quando vou dar-lhes um bisneto. Engraçado que falo de pessoas, não de bens, nem de casas, nem de carros. Mas de pessoas. Concluo que o legado são seus filhos e seus netos.
Estados Unidos
São 7 anos morando nos Estados Unidos, e os últimos 5 em Boston. Hoje, já consigo dizer que tenho a floricultura favorita, a cafeteria favorita, o brunch favorito, e mais recentemente, descobri minha livraria favorita (uma das mais antigas do país e com um andar só de livros raros).
Essa semana, fui fazer a visita de sempre. Chovia e, como uma parte da livraria é a céu-aberto, fiquei chateada de que os livros talvez não estivessem dispostos como na foto acima. Mas as laterais cobertas estavam abertas. Passaram-se 30 minutos de procura scanneando as estantes: Guerra Civil, Arquitetura, Islamismo, Direitos das Mulheres, Flores Exóticas do Ocidente…
Um me chamou atenção: Letter to My Grandchild, ou Cartas aos meus netos, uma coletânea de 34 cartas escritas por personalidades da política, literatura e entretenimento dos anos 90. Uma dessas cartas, da escritora italiana Oriana Fallaci, tocou meu coração (e é essa que trago traduzida na edição da newsletter de hoje).
A sinapse dos dois mundos
Chorei ao ler, pensando nos meus avós, que comemoram seus anos de casados, e também meus avós que já se foram. Pensei no que minha avó falecida diria a seus netos (no caso dela, teve 4). Pensei no que a minha avó ainda viva deixaria de conselho para os seus (nota mental: ligar para a vó e fazer essa pergunta).
A junção desses dois acontecimentos me faz refletir sobre a dificuldade que é ser mãe, avó, e também passar anos de conhecimento e experiência adiante. O livro é em inglês, e a tradução da carta foi feito por mim, de forma livre.
“Você será um homem ou uma mulher?
Eu gostaria que você fosse uma mulher, minha criança, porque eu não concordo de jeito nenhum com a minha mãe, que pensa que nascer mulher é infortúnio e sempre se queixa: “Ah! Se você tivesse nascido um menino!”. Sim, eu sei, nosso mundo foi feito por homens para homens: a ditadura do homem é tão enraizada que se estende mesmo no idioma.
Falamos "homens” para nos referirmos a homens e mulheres, “man-day” para representar um dia de trabalho, “mankind” para nos referirmos à raça humana, “manhood” para se referir a coragem, “manslaughter” para se referir a assassinatos.
E na lenda em que os homens inventaram para explicar a vida, a primeira criatura não foi uma mulher. Foi um homem chamado Adão. Eva chega depois, para entretê-lo e trazê-lo problemas. Nas pinturas que decoram nossas igrejas, Deus é um homem branco com uma barba branca. Nunca uma mulher de cabelo branco. E todos os seus heróis são homens: desde Prometheus que descobriu o fogo, Ícaro que tentou voar, até aquele Jesus que é chamado Filho do Pai e do Espírito Santo como se sua mãe fosse uma incubadora ou uma ama de leite.
Ainda assim, ou por conta disso, ser uma mulher é encantador: uma aventura que requer coragem e desafio que nunca entedia. Você terá tantas coisas para se encarregar se você nascer mulher, minha criança.
Para começar, você terá que lutar para demonstrar que se Deus existisse, ele poderia ser uma mulher mais velha ou uma menina bonita. Depois, você precisará lutar para mostrar que o pecado não começou quando Eva pegou a maçã: ao invés de um pecado, nesse dia ela deu início a uma esplêndida virtude chamada desobediência. Para finalizar, você terá que lutar para provar que dentro do seu corpo existe uma inteligência que grita para ser ouvida.
Ser mãe não é um dever, é um direito dentre muitos direitos. Você ficará cansada de ter que repetir isso. E às vezes, ou quase sempre, você sairá perdendo. Mas aí de você se sentir desanimada. Lutar é muito mais bonito do que ganhar, lembre-se: viajar é muito mais divertido do que chegar. Quando você chega ou ganha, você sente um vazio. Para superar esse vazio você precisa iniciar uma nova jornada, criar um novo objetivo, e sim: eu realmente espero que você seja uma mulher.
Mas se você for um homem, eu também ficarei feliz. E talvez um pouco mais feliz, porque você será poupado de muita humiliação, escravidão e abusos. Você não terá que sentir medo de ser estuprado na escuridão de uma rua, por exemplo, você não terá que colocar um rosto bonito para ser aceito, um corpo bonito para esconder o seu cérebro. Você não precisará ouvir que o pecado se originou porque você comeu uma maçã. E você estará muito menos cansado, você poderá desobedecer sem ser desprezado, poderá se defender sem ser insultado… Mas preste atenção, minha criança, preste atenção: você também terá que aguentar outras escravidões, outras injustiças.
Nem mesmo para um homem a vida é fácil. Como você tem músculos mais fortes, eles pedirão para que você aguente cargas maiores; eles irão impôr a você tarefas mais pesadas. Como você terá uma barba, eles irão rir de você se você chorar ou procurar por ternura. Como você terá uma cauda na virilha, o pênis, eles irão mandar você matar e ser morto na guerra. Eles exigirão sua cumplicidade para continuar a tirania masculina que começaram nas cavernas.
Ainda assim, ou por conta disso, ser homem será um empreendimento tão bonito: um desafio que nunca o entediará.
Ou, pelo menos ao que eu espero, se você for um homem, espero que você seja o homem que sempre sonhei: doce com os fracos, feroz com os arrogantes, generoso com aqueles que amam você, sem piedade com aqueles que te comandam, inimigo de qualquer um que disser a você que Jesus é filho do pai e do espírito santo, e não da mulher que de fato deu à luz a ele.
Minha querida criança, estou tentando te explicar que se um homem não significa ter uma cauda na virilha: um pênis. Significa ser uma pessoa. E, acima de tudo, eu quero que você seja uma pessoa. Essa é uma palavra maravilhosa, a palavra pessoa, pois não demarca limites nas palavras homem ou mulher. Ela não delimita fronteiras entre aqueles que têm uma cauda na virilha e aqueles que não têm. Além disso, a linha que divide aqueles que têm ou não têm uma cauda na virilha é muito tênue.
Coração e cérebro não têm sexo. Nem comportamento.
Se você for uma pessoa com um coração e um cérebro, lembre-se, eu não pedirei que você se comporte de uma forma ou de outra por você ser homem ou mulher.
Eu só vou lhe pedir que aproveite bem o milagre de ter nascido e nunca, nunca, nunca se renda à covardia.”
Um bom domingo!
Com carinho e até terça-feira,
Mari ◡̈
Mari, obrigada por compartilhar esta carta! Confesso que me identifiquei, pois durante a gravidez decidimos não saber o sexo antes do nascimento, e passei a chamá-la de "ela", "a criança"; e continuo me referindo ao Levi como "a criança". E é isso que ele é, independente de ser menino, ele é uma criança. Quando tivermos que lidar com as particularidades (biológicas e sociais) do sexo, lidaremos. Mas primeiro, ele é uma criança s2
Que texto lindo! Arrepiei e me emocionei. Obrigada por compartilhar, Mari 🤍