#51 o que aprendi depois de 10 dias em silêncio
le temps ne respecte pas ce qui se fait sans lui
Índia
A primeira vez em que ouvi o termo retiro do silêncio foi em 2014, quando passei quatro dias em um ashram em Rishikesh na Índia, com alguns amigos. Não participamos do retiro, mas fizemos atividades do local: aulas de yoga, meditação e cantos na margem do rio Ganges às 5:30 da tarde. Voltei para o Brasil, comecei a pesquisar mais sobre meditação. Jamais imaginei que, 10 anos depois, essa prática se tornaria hábito na minha vida.
Estados Unidos
2017
Estava prestes a terminar o mestrado em ciência da computação, quando vários problemas começaram a aparecer: meu diploma não seria emitido pois havia uma parcela a pagar na universidade e a minha bolsa de estudos não iria cobrir, o meu início no trabalho na Dell iria começar em alguns meses e eu não tinha a autorização de trabalho (a autorização estava atrelada à emissão do diploma), eu estava sem renda e com medo de ficar ilegal no país. Recorri novamente à yoga e à meditação. Talvez os meses de novembro e dezembro de 2017 foram os mais difíceis da minha jornada morando fora do Brasil. Eu havia acabado de fazer uma transição de carreira e estava vendo o meu sonho ir por água abaixo com todas aquelas incertezas ao meu redor. Hoje, olho pra trás e entendo que vivi tudo o que vivi porque assim tinha que ser. Minhas experiências me tornam mais de quem eu sou. Sete anos depois, agradeço à Mariana do passado por nunca ter desistido.
2022
Alguns meses antes de receber o meu cartão de residente permanente dos EUA (green card), outras inquietações começaram a surgir: Eu estou feliz nesse trabalho? Quais as oportunidades de carreira o green card poderá me dar? Estou impactando positivamente as pessoas ao meu redor? É suficiente? O que é importante para mim que devo continuar fazendo? O que é importante para mim que estou deixando de fazer? Quais as minhas prioridades? Onde devo focar minha energia?
Minha cabeça é uma máquininha, e eu precisava apertar o botão de pausa.
Novamente, pesquisando sobre meditação, descobri um programa de retiro de silêncio por 5 dias na Carolina do Norte. Ali, a chave começou a virar. Aprendi: que quase tudo o que falamos é fundamentalmente desnecessário (e que escutar é muito melhor); que o silêncio vai além da fala: é parar de julgar, parar de estimular a mente incessantemente, é sobre aceitar e deixar ir; que nossa vida é um longo segundo entre a primeira inspiração ao sairmos do ventre até a última expiração que antecede a morte. Aprendi que meditar é difícil, mas não meditar é ainda pior. Desde então, comecei a meditar 30 minutos por dia, às vezes em silêncio, às vezes guiada.
2023
Ao continuar a minha prática e ler mais sobre outras técnicas de cura e meditação, me deparei com o Vipassana, técnica praticada a mais de 2.500 anos, ensinada por Buddha, e disseminada no hemisfério oeste por S. N. Goenka, desde os anos 60. S. N. Goenka nasceu em Burma (Myanmar), aprendeu Vipassana e a levou para a Índia. Por ser um homem de negócios e viajar para vários países, outras pessoas começaram a se interessar pelso seus ensinamentos, o que o fez abrir centros de meditação em diferentes continentes. Esses centros de meditação são os chamados Dhamma centers (veja a lista completa nesse link).
A técnica de Vipassana é ensinada em um retiro de silêncio de 10 dias. Sem celular, sem comunicação com o mundo exterior, sem ler, sem escrever, sem fazer atividade física, sem olhar nos olhos dos outros. Completamente em silêncio. Somente você e seus pensamentos. Era exatamente isso que eu estava buscando.
Demorei 11 meses para conseguir fazer o curso. A abertura das inscrições começa 4 meses antes, e geralmente fecha em menos de 2 horas. É muito concorrido. O curso é baseado em doações, ou seja, as acomodações, comida, infraestrutura são financiados pelos estudantes que vieram antes de você e, quando o curso termina, você pode doar o quanto quiser, e subsidiar os custos dos próximos estudantes. É um modelo muito interessante.
Abaixo, conto como foram os meus dias no retiro e as lições aprendidas. Elas certamente transformaram e estão transformando a minha vida.
O que é a técnica Vipassana?
Vipassana é uma forma de meditação que tem suas raízes no budismo, mas é praticada de maneira secular em todo o mundo. A palavra "Vipassana" é de origem Pali, uma antiga língua indiana, e significa "ver as coisas como realmente são", não como você gostaria que elas fossem. A prática visa desenvolver uma consciência aguçada e uma compreensão profunda da natureza da mente e do corpo. Ela tem como objetivo purificar a mente (desfazendo-se dos apegos e aversões), levando a um estado de equanimidade e paz interior.
Dia 0 - Dia 3
No dia 0, recebemos instruções sobre o retiro, os horários de meditação, de pausas, de tempo para caminhadas e uma sessão teórica ao final do dia. Deposito o meu celular, carteira, um livro, canetas, papel e diário em um saquinho de pano e entrego para a administração do retiro.
Escrever, ler e usar o celular é proibido. Ao final do dia 0, começo a contar carneirinhos para chegar ao dia 10. As horas são loooongas. O tempo não passa. “Meditar é observar o tempo em seu habitat natural”, reflito. A parte mais legal do dia é tomar o café e fazer a meditação da manhã (minha cabeça ainda está fresca). As meditações da tarde e da noite são sempre as mais difíceis - há muito estímulo durante o dia, a mente se sobrecarrega com histórias, desejos e medos do subconsciente.
O dia passa, os pensamentos vêm, a turbulência mental começa, e minha mente divaga para lugares poucos explorados. Lembro da minha infância, de situações, pessoas e lugares que pareciam esquecidas na minha mente. É uma experiência muito intensa. Vez ou outra, choro. Não sei conter as emoções.
Dia 4 - Dia 8
Se os primeiros 4 dias são intensos e despertam uma mistura de curiosidade e tédio, os seguintes são angustiantes. Meu corpo doi (fazer yoga e alongamentos também não é recomendado). Eu passo a duvidar de mim e da prática. “Estou fazendo certo? O que é certo? O que é errado?”, “Por que todo mundo parece estar com frio e eu estou suando de calor?”. Mil preocupações que de nada adiantam. “Assim como tudo na vida”, reflito mais uma vez.
Durante as meditações, praticamos a atenção e a equanimidade - observar as situações como elas são, e não como gostaríamos que elas fossem. Observamos as sensações e dores no nosso corpo, sem reagir. A cada hora, meditamos sem nos movimentarmos. “A dor também vai passar”, penso e aguento.
No dia 5, não reajo. Vou entendendo melhor a equanimidade (não-reação a situações). Penso que amo reagir e amo me expressar. “Talvez eu não tenha entendido ao certo esse conceito de equanimidade”, me frustro.
No dia 6, agendo uma entrevista com a professora-assistente. Digo a ela que tenho uma personalidade muito expansiva, emotiva, extrovertida. Compartilho com ela que não quero ser “não-reativa” a situações da vida. Quero mostrar e expressar toda felicidade quando algo de bom acontece; quero poder sentir a tristeza quando ela chegar. Ela diz: “Você vai sentir tudo isso, sua personalidade não vai mudar. Mas a maneira com que você encara cada uma delas vai. Você vai estar emocionalmente equilibrada por dentro”. Compartilho com ela o meu medo do que os outros vão pensar. “Nós nos tornamos mais de nós mesmos para nós, e não para os outros. Quem te ama e te conhece, sabe quem você é, por dentro. Você não precisa se explicar”, complementa.
No dia 7, sento na frente de uma janela que dá para uma vista linda da pagoda. Fecho os olhos e começo a meditar. 20 minutos se passam. Abro os meus olhos. Vejo a neve caindo. “A neve diz sim para todos os seus questionamentos, Mariana”. “Viver é um presente”, penso.
No dia 8, passo a observar o meu corpo e minha respiração com mais calma. Me sinto e me faço mais presente. Acordar as 4 da manhã tem seus presentes. O nascer-do-sol é lindo e vivo, apesar do frio. Meu sono já está no compasso perfeito. Sinto meu corpo limpo - sem carne, sem frituras, só vegetais, grãos, salada, café, água e chá. Me sinto limpa por dentro - fisiológica e mentalmente falando.
Dia 9
Ouço um latino de longe perto da colina. Imediatamente penso no Bono. “Que saudade que eu tô!”. Reconheço o meu apego a ele. Lembro que tudo se transforma, lembro que não estou com ele no momento do agora, mas estarei em menos de 24 horas. Entendo que não tê-lo comigo no presente comprova a lei da impermanência. Entendo que um dia não o terei comigo, pra sempre. E esse sentimento não me dá mais medo ou tristeza, mas sensação de paz e aceitação do que se é. A lei da natureza.
Dia 10
O silêncio é quebrado logo após a meditação da manhã. Passo as próximas duas horas conversando com outras três estudantes em frente aos nossos quartos. É um momento lindo de troca e saber os motivos que as levaram a estar ali. Uma luta contra a depressão, a outra havia acabado de perder uma pessoa da família, e a terceira estava prestes a engravidar. O meu motivo não está ligado a nenhuma doença ou grande evento, mas está conectado com tudo o que já vivi até aqui: ter deixado meu país de origem, ter deixado meu status de trabalho em uma grande empresa, ter tido meu coração quebrado várias vezes e, principalmente, por ter visto todos os benefícios que a experiência da meditação me trouxe e ainda me traz. Eu queria mais, e queria que fosse mais difícil. E foi, muito mais do que imaginei.
Dia 11
Acordamos cedo para mais uma meditação em grupo, uma fala do S.N. Goenka, organizamos o hall de meditação, e tomamos café. Me preparo para ir embora. Termino de limpar o quarto, estendo a mantinha indiana na cama e começo a chorar. Penso na próxima estudante que vai estar naquele quarto em alguns dias, e como esses dias vão transformar pra sempre a sua vida. Choro de felicidade, alegria. Foi um momento lindo de fechamento do retiro.
Pego carona com um dos estudantes. Partimos para Boston. Entro na estação de Alewife, e percebo o quanto o meu corpo e meu coração dão sinais após os estímulos que recebo visualmente: o cheiro do metrô, o homem dormindo na calçada, o barulho dos trilhos. Tudo estimula a minha mente e entra em contato com o meu (não tão) subsconsciente.
Vou voltando à vida normal, já percebendo que o “normal” jamais será o mesmo.
Lições
Voltei para casa no dia 19 de novembro, e ainda estou refletindo sobre os momentos no retiro e o que a experiência mudou em mim. Algumas das reflexões soam simples e clichês, mas internalizar cada uma delas é parte fundamental do aprendizado.
O aqui e o agora é tudo o que existe: Presto atenção pacientemente em como o meu corpo toca o tempo. Como o presente traz a sensação de calma, de que só o agora importa e só ele existe. Não existe presença no passado, o passado é só memória.
Tudo está em constante mudança: A lei da impermanência está presente em todas as situações e momentos, até mesmo nas dores que atravessam o meu corpo.
O conceito de Vipassana: Aceitar as coisas como elas são, e não como eu gostaria que elas fossem.
A minha mente é a minha realidade.
Se tudo muda o tempo todo, se tudo o que eu planto, eu colho, e se nada está em meu controle: porque tentar controlar tudo e todos ao meu redor? As coisas vão acontecer como devem acontecer e a única coisa que está em meu controle é como vou reagir a elas. Isso tira uma pressão enorme em tentar ser perfeita.
As construções da sociedade são artificiais.
Passamos a vida nos perguntando: “Qual o sentido da vida? Qual o meu propósito?”, quando na verdade, todos os dias, é a vida quem nos pergunta: “Qual o sentido você vai dar a mim? Qual você quer que seja o seu propósito?”.
Passei 30 anos da minha vida absorvendo, consumindo, assistindo, seguindo as instruções da sociedade (compre! consuma! siga padrões! fale o que os outros querem ouvir! jogue o jogo do status! adquira bens! trabalhe enquanto os outros dormem!).
Os meus próximos 30 serão para desconstruir e desaprender tudo o que me foi ensinado, e aprender a domar a minha mente, porque ela é quem é a minha realidade.
Estou começando a engatinhar.
Ao som de:
Com carinho,
Mari ◡̈
Querida, obrigada pela partilha singela. Luz e amor.
Incrível sua capacidade de transmitir as emoções . Te amo muito .