Meditar e correr
me preparo para sair de casa no frio de 3°C que faz em Boston. é o final de semana de St. Patrick’s1 e a cidade está viva2.
amo ver a cidade viva, principalmente no inverno, penso.
jovens, adultos e crianças vestindo verde por todas as esquinas. algumas no metrô indo em direção a parade para celebrar, ou fazendo filas nas dezenas de pubs espalhados pela cidade.
outras, como eu, cruzando o jardim público para correr às margens do Charles River.
amo me sentir viva, principalmente no inverno, penso, enquanto um pedacinho de céu se esforça a aparecer no meio das nuvens.
uso calça de ginástica, mangas longas, boné, óculos de sol e um tantão de protetor solar no rosto e no pescoço. o objetivo é correr por 45 minutos. faz alguns meses que não corro e o meu único aeróbico tem sido as aulas de spinning. a bicicleta e a corrida são esportes totalmente diferentes e o impacto nos meus joelhos também. começo a correr logo na esquina da Park St. com a Tremont St. preciso desviar dos turistas e sorrio quando vejo um casal encapuzando um bebê dentro do carrinho, fazendo caretas e rindo, mesmo no frio.
sigo pelo parque. à minha direita vejo a copa dourada e reluzente da State House, à minha esquerda o abraço3 de Martin Luther King Jr. and Coretta Scott King, e mais à frente alguns cachorros soltos e brincando no espaço de grama dedicado para os off-leash. liberdade controlada. continuo sorrindo. o meu corpo está se aquecendo e a minha respiração está como os cachorros, livre e controlada.
nada dói.
em questões de segundo decido se vou cruzar a Commonwealth e depois seguir pela Harvard Bridge, ou se faço o caminho pela Esplanade. escolho pelo segundo, hoje quero ver mais a àgua do que as árvores. sigo. ainda não é hora de tirar a blusa de mangas longas.
lembro que ontem mesmo estava no hospital com a minha mãe. ela sofreu uma queda e machucou a barriga. penso como a saúde e a doença andam de mãos dadas o tempo todo. agradeço por poder correr.
ao escrever, percebo que esses pensamentos compartilhados foram os mais latentes, por isso os recordo. percebo que muitos dos minutos da corrida passaram simplesmente em branco. acredito que são, portanto, esses momentos que a minha mente e corpo estão totalmente alinhados e nada além do momento presente importa.
certa vez, disse que a corrida é um jogo da mente. estava errada. a corrida é um jogo de presença. no presente não existe dor, apenas sensações pelo corpo que aparecem e desaparecem. assim como na meditação. penso como as duas coisas estão interligadas. a meditação e a corrida são práticas totalmente diferentes, mas diretamente impactantes.
continuo a correr. me sinto invencível e penso que conseguiria continuar aqui por mais três horas. a gente se ilude fácil nos momentos de vitória, né?
até que o dito-cujo do momento chega. pra mim, geralmente, na marca dos 30 minutos. aquele momento que todos nós conhecemos, na meditação ou na corrida, ele sempre aparece. nosso corpo já está cansado. a mente acelera, o descompasso acontece. às vezes os braços cansam, outras vezes, o pescoço. penso que só tomando um gole de gatorade eu ficaria melhor. meu corpo tenta achar as desculpas que o fariam se sentir mais confortável, buscando pelos prazeres e muletas físicas.
tudo dói.
you don’t stop when you are tired, you stop when it’s done, penso, lembrando de um homem segurando um cartaz com esses dizeres no percurso da corrida de 10km do ano passado. não era pra mim, óbvio, por que no cartaz dizia “Chelsey”.
Chelsey is lucky to have you here, whoever you are, pensei naquele dia.
me esforço para voltar para o presente. vejo a ponte se aproximando. meu telefone toca. agora não, penso. devia ter colocado no modo avião, ignoro e continuo. por alguns minutos, mente e corpo se alinham. foco nos meus pés e no movimento, olho para o chão e vejo as marcações smoot4. a próxima, está escrito “69 - heaven”. dou risada. com certeza foi escrita por um homem, penso.
continuo a correr, e os pensamentos vêm de galope. a mente está entediada, o cansaço não é só físico, mas mental. na meditação é igualzinho, o tédio tem o poder de nos desequilibrar. na meditação, controlamos o tédio e não deixamos a mente divagar. é assim que se aprende, empiricamente, a praticar a equanimidade5.
meus joelhos começam a doer. tiro a blusa de mangas longas. ajusto meus óculos e meu boné. suo muito no calor de três graus celsius. testa, pescoço, colo e braços. meu nariz escorre, limpo com a manga. amarro a blusa na cintura e comprimo meu abdômen. sorrio.
em questões de segundo decido se vou passar o MIT Sailing Pavillion e seguir até o Museum of Science, em um loop, ou se volto pela mesma ponte. nunca fiz o trajeto até o museu, então decido seguir. decisão acertada. me vem à memória quando pisei lá pela primeira vez, como mentora do programa de carreira da empresa de tecnologia que trabalhei. sorrio de novo para a memória do passado, e também para o carro que parou para eu passar.
meu alarme de 45 minutos da corrida apita. continuo correndo, reduzo a passo e desligo o alarme. de longe, vejo o logo do Mass General Hospital, o hospital que estava no dia anterior com minha mãe. não quero voltar ali, preciso continuar, penso. alguns metros adiante, paro e pauso o strava: 51 minutos. respiro aliviada, com o rosto vermelho e quente, e a respiração ainda ofegante. como um cachorro preso a coleira: nada livre, e muito menos controlado.
olho para o céu: abriu, azul.
nos meus pés, a única peça verde que vesti: meias com trevos de três folhas para comemorar o feriado irlandês.
volto andando pelo jardim público, tiro uma foto do lago seco, barren6, de inverno.
penso como a vida e a morte andam de mãos dadas o tempo todo.
agradeço por poder correr.
भवतु सब्ब मंगलम / may all beings be happy / que todos os seres sejam felizes,
mariana
homenagem à São Patrício, padroeiro da Irlanda.
Boston foi uma das primeiras colônias a serem formadas nos Estados Unidos (parte das 13 colônias), pelos imigrantes ingleses (essa região é chamada de Nova Inglaterra), mas também com forte imigração dos irlandeses. um símbolo característico do país está presente no time de basquete da cidade, o Boston Celtics.
estado de equilíbrio emocional e mental diante das circunstâncias da vida, sejam elas positivas ou negativas.
estéril.




